DOI: http://dx.doi.org/10.242661/2183-816x2404
Dina Salústio e a violência de gênero
na literatura cabo-verdiana
Geni Mendes de Brito1
Tânia Maria de Araújo Lima2
Com o desenvolvimento do pensamento feminista a partir de 1960, a mulher
passou a ser objeto de estudo em diversas áreas do conhecimento, na tessitura
da literatura, da sociologia, do estudo literário, da flosofa, da antropologia,
bem como da psicanálise. De lá para cá, houve um grande avanço nos estudos
que abordam o papel da mulher nos variados contextos em que ela está
inserida.
As mulheres engendraram uma subcultura dentro dos limites da sociedade
regulada pela ideologia patriarcal, assim como o fiz eram os grupos
minoritários: negros, índios, homossexuais, transexuais, etc. (Showalter, 1985
apud Zolin, 2009). Sob essas condições, as mulheres escritoras construíram
uma tradição literária que vem se destacando desde "Maio de 68" aos dias
atuais. A literatura escrita por mulheres vem buscando insistentemente a
própria identidade feminina, que, por muitos séculos, fcou escondida e foi
massacrada pelo patriarcado ao longo da história da humanidade mundo afora.
Este texto busca compreender a subjetividade da mulher cabo-verdiana em
situação de violência de gênero a partir de uma refexão antropológica e
literária. O conceito de gênero é bastante discutido entre intelectuais de
diversas camadas sociais, diferentes manifestações religiosas e culturais. Para
Safo ti (2004), o termo gênero pode englobar tanto relações não
hierarquiizadas como relações em que ocorra a dominação–exploração de um
sexo sobre o outro. E dentro da categoria gênero, podem-se localiizar as
relações homem–homem e mulher–mulher, entretanto, é mais comum o uso
do termo para designar relações entre os sexos opostos. Scot (1995, p. 86)
analisa o gênero como uma "referência com base na qual se decodifcam
o sentido e a complexidade das relações sociais." A autora fala das relações
1
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte ( UFrn), Natal, rn, Brasil. E-mail:
geni-mendes@hotmail.com
Doutora em Letras e professora do Programa em Pós-Graduação em Estudos da Linguagem
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFrn), Natal, rn, Brasil. E-mail:
tanialimapoesia@yahoo.com
Geni Mendes de Brito
Tânia Maria de Araújo Lima
de poder e das desigualdades sociais entre os sexos, em que na maioria dos
casos, o sexo feminino está em desvantagem.
Para essa refexão, apresentamos o conto "Foram as dores que o mataram" —
presente no volume Mornas eram as noites (1994), da escritora Dina Salústio.3
Mornas eram as noites é um livro de contos com 35 narrativas curtas em que é
apresentado, em um contexto multifacetado, um arsenal de temas híbridos e
associados a situações vividas por mulheres cabo-verdianas. Dina Salústio afrma
que é "uma mulher que escreve umas coisas" (Gomes, 2008, p. 218), que "conta
estórias de mulheres" em um universo identitário regido pelo signo da
alteridade. Porta-retrato das minorias silenciadas, na percepção de Salústio,
estas mulheres sem nome, sem rosto, sem voiz, traizem ao palco os
problemas que tocam as mulheres em diferentes contextos sociais e culturais
do mundo ao redor. Mornas eram as noites não passa despercebido aos olhos do
leitor atencioso. O conceito de morna está associado a diferentes signifcados.
Morna é modalidade musical típica de Cabo Verde, mas é também uma
modalidade poética em que os povos insulares expressam a alegria, a dor, a
nostalgia, o amor. Morna traduiz todo o sentimento nacionalista que identifca o
cabo-verdiano. A pesquisadora Simone Caputo Gomes explica que "Morna"
defne as crônicas da vida cantadas por mulheres, e, nessas crônicas, estão
presentes o ambiente doméstico e todos os sentimentos existenciais do
cotidiano feminino (Gomes, 2000, p. 115).
Na arte de contar as mornas, Dina Salústio reinventa o cotidiano de mulheres
que estão inseridas no mundo doméstico feminino. Percebe-se na prosa
salustiana as pegadas dos avanços à emancipação das mulheres, as violências
sociais, as discriminações sofridas, a iniciação sexual, assim como a gravideiz
precoce, a falta de planejamento familiar, a prostituição, os emblemas sociais
ainda visíveis no quadro de exclusão das mulheres cabo-verdianas. As fguras
femininas expostas na escrita de Salústio são diferenciadas e representam um
amplo apanhado de todas as classes sociais e de diferentes idades.
Diante da variedade de produções femininas pelo mundo, a produção
literária em Cabo Verde traiz à tona textos cujos temas revelam as experiências
sociais das mulheres cabo-verdianas, que, em situações insalubres, são tomadas
como representantes de inúmeras realidades com dilemas de violência.
Atualmente, Dina Salústio é uma das fccionistas mais conhecidas da literatura
3
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Bernadina Oliveira Salústio — conhecida como Dina Salústio. Natural da Ilha de Santo
Antão (1941), Cabo Verde.
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Dina Salústio e a violência de gênero
na literatUra cabo-verdiana
cabo-verdiana, que, através da poesia e do ensaio, vem despertando no leitor o
interesse de conhecer melhor a jovem literatura cabo-verdiana. A produção
literária do arquipélago é hoje bem vista pela crítica, "inaugura uma nova
maneira de diizer o mundo a partir de Cabo Verde" (Gomes, 2000, p. 115).
Com o objetivo de ilustrar essa situação, far-se-á uma abordagem crítica,
sob a ótica de alguns teóricos dos estudos literários e antropológicos. No conto
"Foram as dores que o mataram", observa-se fragmentos de uma violência que
se institui no corpo do imaginário fêmeo:
Não importa o dia. Nem importa mesmo o ano em que se conheceram.
Aconteceu. E houve um momento em que se amaram. Talveiz tenha havido
muitos momentos em que se amaram.
Depois, a rotina de vidas que se afastaram, e, incompreensivelmente, continuam
juntas. E, dramaticamente caminham juntas, num desafo permanente à vida, ao
direito de viver.
Não matei o meu marido. Eu o amava. Por que matá-lo?
Foram as dores do meu corpo que o condenaram. Foi o sangue pisado, o ventre
moído, as feridas em pus.
Foram as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas de amanhã
que o mataram.
Eu amava-o. Por que matá-lo?
Foi o meu corpo recusado e dorido após o uso e os abusos. Foram a tristeiza,
o desespero e a dor do amor que não tinha troco.
Eu amava-o. Por que matá-lo?
Às veizes fcava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o trabalho com
a roupa que eu lavara e engomara.
Gostava do seu modo de andar, do jeito como inclinava a cabeça. Via-o partir
e ali fcava horas à espera que voltasse e me trouxesse um riso e a esperança
de que as coisas iriam mudar. Nesse dia não lembraria mais os tempos duros,
os paus de pedra que me roíam e me desgastavam as entranhas. Mas para
mim, não voltava nunca. Apenas para pedaços de meu corpo que esquecia logo.
Eu amava-o. Por que matá-lo?
Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição,
a miséria, o animalesco. E nós.
Deu-me armas e feiz-me assassina. … Depois fcou tudo escuro. E o corpo a doer,
a doer, a doer, a…
Um soluço frágil absorve a última palavra (Salústio, 1994, p. 21–22).
A temática do conto mostra a "conjugal-idade" entre um homem e uma
mulher e a violência baseada no gênero, discutida e questionada do ponto de
vista feminino. O conto está dividido em quatro partes: na primeira parte
Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 24, tp. 55–69, jul./dez. 2015
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percebe-se a voiz do narrador faizendo uma espécie de apresentação do conto.
O discurso é de um tempo sem data, pois não apresenta uma temporalidade
bem defnida, documenta um fato que se estende na sociedade de Cabo Verde.
O conto se inicia sem localiização no tempo, indicando que a situação vivida
pelo casal é secular: "Não importa o dia. Nem importa mesmo o ano em que se
conheceram. Aconteceu. E houve um momento em que se amaram. Talveiz
tenha havido muitos momentos em que se amaram" (Salústio, 1994, p. 21).
A violência baseada em gênero ocorre principalmente no interior da
família, inclusive entre pessoas que se amaram, como ressalta a contadora,
porém há ausência de igualdade na relação. Com o passar do tempo,
o recrudescimento dos confitos concorre para que uma das partes, quase
sempre a mulher, acabe sendo oprimida e até mesmo vítima de violência:
"Depois, a rotina de vidas que se afastaram, e, incompreensivelmente,
continuam juntas. E, dramaticamente caminham juntas, num desafo
permanente à vida, ao direito de viver" (Salústio, 1994, p. 21).
Percebemos no texto que a violência doméstica é produto de um padrão de
relações assimétricas entre homem e mulher, legitimado pela ideologia
patriarcal dominante e favorecido pela forma como a mulher se encontra
sujeita aos desígnios socioeconômicos e culturais prevalecentes.
Os estudos sobre violência de gênero e a discussão sobre o patriarcado
derivaram de pesquisas sobre a mulher e sobre a contribuição do movimento
feminista. A violência contra a mulher é uma ação ou conduta baseada no
gênero, que causa morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico,
tanto no âmbito público quanto privado. As violências baseadas em gênero são
agudiizadas pelas desigualdades sociais, ou seja, há uma sobreposição entre os
sistemas de dominação, exploração de classe, gênero e etnia. ( Ramão;
Meneghel; Oliveira, 2005, p. 80).
Contribuindo com essa afrmação, Miriam Pillar Grossi (2004) aponta que
a dominação masculina é uma das questões teóricas que fca no epicentro
das refexões sobre gênero. Desde o fnal de 1970, a opinião geral era
que a dominação masculina seria universal, presente em todas as
culturas; simbolicamente, politicamente e economicamente, os homens
dominavam as mulheres. Hoje, grande parte dos autores concorda que essa
dominação ainda existe na maior parte das diferentes culturas do planeta.
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Para entendermos a raizão da desigualdade entre os gêneros, é importante
conhecermos como se deu a construção social da dominação masculina. Anete
Goldeberg (1989) afrma que as origens das desigualdades sexuais e de opressão
feminina se encontram no "patriarcado", tipo de supremacia e dominação
masculina presente em todas as sociedades históricas e em todas as relações
sociais, responsável pela exclusão sistemática das mulheres em todas as
instâncias de poder, mas também pela permanente desvaloriização dos papéis e
tarefas a elas atribuídas (Goldeberg, 1989, p. 8).
Ainda segundo Grossi (2004), a fm de manter a hegemonia masculina,
o sistema patriarcal criou estratégias para tornar a mulher um objeto
simbólico. Estabeleceu a divisão social do trabalho com base no sexo,
construindo assim a dicotomia da inferioridade feminina e superioridade
masculina — reservou ao homem o espaço público, de melhor prestígio
e melhor remunerado, enquanto à mulher foi dedicado o espaço privado, com
baixa remuneração. Com o discurso da diferença biológica, os papéis sociais
foram reforçados, atribuindo às mulheres características tidas como naturais,
como cuidar dos flhos e da casa. A família, a Igreja e a mídia contribuíram
diretamente no processo que levou à desigualdade entre os gêneros (Grossi,
2004, p. 15–16). Porém, essa relação de desigualdades entre o masculino e o
feminino passou a ser questionada por importantes movimentos sociais
capaizes de abalar a estrutura do sistema patriarcal. Tanto o movimento
feminista como os movimentos gays e juvenis deram grande contribuição a
partir dos questionamentos da desigualdade baseada no gênero.
Na segunda parte do conto, percebe-se que a vítima atribui à agressão: "as
dores do corpo", "o sangue pisado", "o ventre moído", "as feridas em pus",
"o medo", "as pancadas de ontem, as de hoje e, sobretudo, as pancadas
de amanhã", "as dores da alma", "a tristeiza, o desespero e a dor do amor que
não tinha troco". Dina Salústio constrói uma situação em que a mulher
é vitima da violência psicológica e física no seio familiar e, por ser vítima, a
narradora redime-a da culpa de ter matado o marido, transferindo-a para as
torturas e pancadas infringidas por ele. Em discurso direto, a personagem
feminina aparece para se defender contra a acusação de assassinato do marido.
O leitor é o tempo todo informado da violência praticada pelo marido: "Não
matei o meu marido. Eu o amava. Por que matá-lo?" (Salústio, 1994, p. 21).
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A personagem feminina tinha consciência de que sofreria violência
doméstica enquanto houvesse relacionamento conjugal, pois o companheiro
não mudava a forma de lidar com os afetos. Ao redor do mundo, enquanto
o homem utiliiza-se da violência de forma constante para impor sua
vontade e afrmar-se, a mulher usa a violência como meio de livrar-se da
situação a que está submetida. O momento do confito se apresenta
anterior à morte do marido e ilustra muito bem a situação do "patriarcado"
que, segundo Heleieth Safoti (1976/2004), é o sistema masculino de opressão
das mulheres. Por baixo dos travesseiros da história, ainda segundo a autora,
o conceito foi redefnido como um conjunto de relações sociais que tem uma
base material e no qual há relações hierárquicas entre homens e o pacto de
solidariedade que existe fortemente entre eles é o que os habilita a controlar
as mulheres.
A ideologia patriarcal, aliada à opressão imposta pelo colonialismo, valeu-se
de estratégias autoritárias para excluir as mulheres das escalas e atividades de
prestígio na sociedade, inclusive no tocante à autoria literária. No bojo desse
processo, a ordem androcêntrica perpetrou também outra forma de violência,
que reduizia a mulher ao espaço restrito do claustro privado do cotidiano,
subjugando-a perante os domínios masculinos oriundos do espaço público.
Constata-se que os primeiros estudos sobre a violência contra a mulher
postularam que a violência acontecia em todas as classes sociais, porém existe
o consenso de que há um agravamento quando a discriminação de gênero
soma-se à racial. Por exemplo, quando mulheres negras tentam prestar queixa
policial, enfrentam difculdades, em virtude do racismo dos policiais para com
o povo negro. Além das difculdades econômicas, outras situações como o
desemprego, a pobreiza, a falta de qualifcação profs sional, as relações
conjugais problemáticas e a responsabilidade com os flhos faizem com que
essas mulheres sintam-se deprimidas, desmotivadas, doentes, o que gera uma
situação confitiva e constrangedora no seu cotidiano, por serem mulheres,
pobres e negras (Ramão; Meneghel; Oliveira, 2005, p. 82).
De acordo com as autoras do artigo "Nos caminhos de Iansã: cartografando
a subjetividade de mulheres em situação de violência de gênero" (2005), para a
maioria dessas mulheres, o lar já não representa um espaço de proteção. Até
pouco tempo, a violência intrafamiliar era tratada como um assunto de caráter
privado. A dicotomia entre espaço público e espaço privado (com conotação
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hierárquica designada a cada sexo) surge como marco de análise a fm de
explicar a subordinação da mulher dentro do lar. De acordo com esse enfoque,
a autoridade do homem estende-se a todos os níveis da vida social, pública e
privada, justifcando-se pela sua inserção no trabalho produtivo. Por outro
lado, à mulher, destina-se o espaço doméstico restrito e controlado, sendo esta
colocada em posição de inferioridade no conjunto das relações sociais. Em
virtude disso, muitas veizes, a mulher assumiria comportamentos dependentes.
Na terceira parte do conto, a vítima recorda um tempo já distante, em que
as formas verbais "fcava", "gostava", "via", transportam-na para um tempo
regido por admiração e felicidade. O texto é fragmentado pelas lembranças e,
de forma ligeiramente poética, mostra sentimentos nostálgicos de um passado
que não pode mais ser revivido.
Às veizes fcava à janela, meio escondida, vendo-o partir para o trabalho com a
roupa que eu lavara e engomara. Gostava do seu modo de andar, do jeito como
inclinava a cabeça. Via-o partir e ali fcava horas à espera que voltasse e me
trouxesse um riso e a esperança de que as coisas iriam mudar. Nesse dia não
lembraria mais os tempos duros, os paus de pedra que me roíam e me
desgastavam as entranhas. Mas para mim, não voltava nunca, apenas para os
pedaços de meu corpo que esquecia logo (Salústio, 1994, p. 21–22).
No ensaio intitulado "Cenas e queixas: mulheres e relações violentas",
Maria Filomena Gregori (1992, p. 164) salienta que ser vítima signifca aderir
a uma imagem de mulher que está na posição de vítima ao pedir um
auxílio, é se colocar na posição de alguém que busca amparo.
Na quarta parte do conto, o papel de vítima é assumido pela mulher, assim
como dois outros: o papel de agressora e o de acusadora. Aos poucos, a autodefesa
adquire a forma de uma acusação. Ela cria também um espaço em que predomina
a violência e a morte. Na ótica da esposa violentada, o responsável pela própria
morte é o marido, por criar e fomentar um ambiente de violência em sua própria
casa. Ela expõe as condições que a levaram ao ato e, através de fatos descritos,
quer mostrar que é isenta de culpa. "A personagem feminina de Dina Salústio não
aceita passivamente essa realidade de agressões: ela rebela-se, revolta-se, queixase, sente ódio, grita e mata" (Queiroz, 2010, p. 130).
Ele matou-se. Criou um espaço onde coabitavam a violência, a destruição, a
miséria, o animalesco. E nós. Deu-me armas e feiz-me assassina. … Depois fcou
tudo escuro. E o corpo a doer, a doer, a doer, a… (Salústio, 1994, p. 22).
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O conto termina com a volta do narrador participando de forma solidária
no fechamento do cenário. É como se o palco da vida se fechasse para uma
nova cena. Um soluço frágil corta o relato da mulher, deixando em aberto ao leitor
uma gama de sentimentos confitantes que abrangem dor, coragem, privação dos
sentidos, amor, e quem sabe, arrependimento por rebater violência com violência:
"Um, soluço frágil absorve a última palavra" (Salústio, 1994, p. 22).
A mulher representada no conto de Dina Salústio não tem nome,
é anônima, pois assim simboliiza muitas outras mulheres tanto em Cabo
Verde como no resto do mundo, que são abusadas, violentadas e
reprimidas. A personagem radicaliiza um tipo de revolta, pelas dores
sofridas, pela vida roubada em diferentes aspectos e, principalmente, pela
falta de esperança. Matar o marido aqui signifca um ato de desespero, de
grito ocasionado pela violência e pelo desamor sofrido. Embora o quadro
social e legal tenha mudado, a violência de gênero continua a faizer parte
do cotidiano de muitas mulheres, articulando outras vulnerabilidades
sociais e econômicas e alicerçando-se nas desigualdades das relações de
gênero. São essas relações que encerram a mulher numa malha de
dependências que marca o seu processo de vítima e que condiciona a sua
forma de olhar a violência.
O Artigo 1º da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher (Delgado, 2007, p. 22) aponta que as causas
mais prováveis da violência doméstica em Cabo Verde são: a condição
socioeconômica; o machismo, ou sentimento de superioridade do homem sobre
a mulher, especialmente nas classes menos favorecidas economicamente;
o desemprego; o alcoolismo e o consumo de drogas. A violência sexual, física
e psicológica também é uma realidade presente no cotidiano da mulher
cabo-verdiana.
García-Moreno (2002, p. 92) apresenta o conceito de violência contra a
mulher em diferentes aspectos: violência doméstica, violência de gênero e
violência contra mulheres são termos utiliizados para denominar esse grave
problema que degrada a integridade da mulher. A violência de gênero pode
manifestar-se através de violência física, violência psicológica, violência sexual,
violência econômica e violência no trabalho.
A flósofa e feminista Marilena Chauí (ChaUí, 1985 apud Santos; IzUmino,
2005, p. 3), afrma que "a violência contra as mulheres é o resultado de uma
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ideologia de dominação masculina que é produizida e reproduizida tanto por
homens como por mulheres". Acrescentando que essa violência contra a mulher
é tão somente uma "fagrante manifestação de poder" (Arendt, 1994, p. 32),
Hannah Arendt reforça a questão da dominação, quando explica:
Ao que parece, a resposta dependerá do que compreendemos como poder. E o
poder, ao que tudo indica, é um instrumento de dominação, enquanto a
dominação, assim nos é dito, deve a existência a um "instinto de dominação".
Lembramo-nos imediatamente do que Sartre disse a respeito da violência
quando em Jouvenel que um homem sente-se mais homem quando se impõe e
faiz dos outros um instrumento de sua vontade, o que lhe dá um "praizer
incomparável" (Arendt, 1994, p. 33).
Nas sociedades atuais, convivemos com várias formas de violência. A
violência que é decorrente dos altos índices de desigualdade social e da pobreiza
generaliizada provoca outras violências, como aquelas que são praticadas pela
discriminação contra as minorias, tais como negros, índios, mulheres, crianças
e idosos. Essa violência, ainda segundo Chauí, "é uma ação que transforma
diferenças em desigualdades hierárquicas com o fm de dominar, explorar e
oprimir", tratando o ser dominado como "objeto" e não como "sujeito",
silenciando-o e tornando-o dependente e passivo (ChaUí, 1985, p. 36). Já para
Safoti, (2004), a mulher não é assim tão passiva e dependente, pois com sua
pequena parcela de poder, dentro de uma relação de subordinação, ela
questiona essa supremacia masculina e encontra meios de resistência. A autora
defende que, dentro do binômio dominação–exploração da mulher, os dois
polos da relação possuem poder, mas de maneira desigual. É o que Safoti
denomina de micropoderes quando afrma:
Existem, todavia, micro–poderes, ou seja, segmentos populacionais dotados da
capacidade de deles faizer uso. Se não conseguem revolucionar o mundo de forma
acelerada, faizem-no em espaços capaizes não só de colaborar para a
transformação da sociedade, como também de tecer uma malha social de
sustentação das conquistas realiizadas nos processos macro (SaFFioti, 2004, p. 30).
Ao tomar a responsabilidade pela educação dos flhos e pelos cuidados
domésticos, a mulher desenvolve estratégias de reação e resistência à
dominação masculina, ao mesmo tempo em que pode desenvolver mecanismos
de negação dos papéis sociais impostos ao sexo feminino. Ainda que limitada, a
mulher detém uma parcela signifcativa de poder sociocultural, que a torna
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capaiz de interferir na construção da subjetividade e da condição masculina,
negando assim, sua total condição de passiva e dependente (Boris, 2004).
A v i o l ê n c i a f a iz c o m q u e a v í t i m a p e r c a s u a a u t o n o m i a , s u a
autodeterminação para pensar e agir como queira. A violência contra a mulher
está ligada diretamente ao preconceito e ao abuso de poder cometido pelo
homem, diante da vulnerabilidade feminina.
Reforçando a questão sobre a violência contra as mulheres, em seu livro
intitulado A dominação masculina, Pierre Bourdieu (2002, p. 49–50) aponta que
a dominação do homem sobre a mulher é exercida por meio de uma violência
simbólica, compartilhada inconscientemente entre dominador e dominado e
determinada pelos esquemas práticos do habitus. Pierre Bourdieu descreve a
violência simbólica como um ato sutil que oculta relações de poder que
alcançam não apenas as relações entre os gêneros, mas toda a estrutura social.
Não é à toa que o sociólogo afr ma que uma relação desigual de poder
comporta uma aceitação dos grupos dominados, não sendo necessariamente
uma aceitação consciente e deliberada, mas principalmente de submissão prérefexiva.
Como em toda dominação, os esquemas de pensamento dominantes
infuenciam também os dominados, que acabam por legitimar ainda mais a
dominação. Nessa lógica, as próprias mulheres acabariam, segundo Bourdieu, por
reproduizir as representações que as depreciam na ordem social. E essa reprodução
sobre a mulher surge desde a Idade Média, quando Graciano afrma em seu
discurso dominical: "A mulher não tem poder, mas em tudo ela está sujeita ao
controle do seu marido". Com essa afrmação, esse monge italiano que viveu no
século Xi estava expressando uma das crenças universalmente aceitas:
a inferioridade inerente e insuportável das mulheres (Richards, 1993, p. 35). Em
Sexo, desvio e danação, Jefrey Richards afrma que "as teorias sobre o papel da
mulher haviam sido desenvolvidas pelos padres da Igreja. Esta visão da
inferioridade da mulher era uniformemente divulgada nos tratados teológicos,
médicos e científcos, e ninguém a questionava" (Richards, 1993, p. 36). A lei
canônica permitia especifcamente o espancamento da esposa, e isso acontecia em
todos os níveis da sociedade.
A respeito da sociedade moderna, Marilena Chauí afrma, ainda, que
"as mulheres são cúmplices da violência e contribuem para a reprodução
de sua dependência porque são instrumentos da dominação masculina"
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Dina Salústio e a violência de gênero
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(ChaUí, 1985 apud Santos; IzUmino, 2005, p. 4). Contrária a essa
afrmação de Chauí, Safoti (2004) defende que a violência contra as
mulheres é resultado de uma sociedade com valores patriarcais que estabelece
uma espécie de cumplicidade entre homens. Nesse contexto, as mulheres são
controladas e submetidas à dominação masculina.
Se, na famosa frase de O segundo sexo (1970), a escritora francesa Simone de
Beauvoir afrma que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher", a escritora
Dina Salústio, em entrevista concedida a Simone Caputo Gomes, afrma que
"em Cabo Verde, quando nasce uma menina, ela já é uma mulher" (Gomes,
2000, p. 114). Enquanto a frase de Beauvoir inspirou muitas gerações de
mulheres a mergulhar no verdadeiro signifcado da condição feminina no
passado e no presente, Dina Salústio "propõe uma espécie de estigma que
marca as meninas cabo-verdianas desde o nascimento, em que estas carregarão
o peso da discriminação social, da pobreiza, da violência que sofrerão na carne
por ser mulher" (Queiroz, 2010, p. 106).
Em Cabo Verde, após a independência em 1975, muitas foram as conquistas
sociais para as mulheres, inclusive no campo literário. Atualmente, a autoria
feminina procura, sobretudo, dar visibilidade e voz à historicidade das mulheres
(Gomes, 2008, p. 277). Além de Dina Salústio, escritoras como Orlanda
Amarilis, Ivone Aída, Fátima Betencourt, Vera Duarte, entre outras, utiliizamse da poesia como canal de divulgação e luta contra a opressão masculina, por
meio do qual essas autoras procuram conscientiizar e elevar a autoestima das
mulheres do arquipélago.
Ao escrever o conto "Foram as dores que o mataram", Dina Salústio faiz uma
denúncia da violência contra a mulher como violência velada. Palavras bonitas,
como "passividade", "dedicação", "sinceridade", "fdelidade" escondem
sentimentos de dor e abandono, de tristeiza e solidão, de vida e violências que
se faizem presentes em diferentes contextos nos quais vive a mulher.
Conforme Maria Teresa Salgado, todas as histórias de Mornas eram as noites
tratam de temas amplamente abordados na literatura: a solidão, o medo, a
violência social, a miséria, a frustração dos desejos e expectativas.
No entanto, por mais dolorosas que sejam as cenas aí retratadas, o saldo fnal é
o do mergulho do narrador no texto, nutrindo-o a partir de suas experiências
pessoais, não como alguém mais sábio, mas como alguém capaiz de captar
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Tânia Maria de Araújo Lima
admiravelmente experiências e emoções, compartilhando-as com o leitor
(Salgado, 2008, p. 39).
Essa compreensão encontra amparo no pensamento de Walter Benjamin. O
crítico literário e flósofo alemão aborda a fgura do narrador, não mais como
um sábio, mas como aquele que é capaiz de dar um conselho e cuja tarefa é
"trabalhar a matéria-prima da experiência — a sua e a dos outros —
transformando-a num produto sólido, útil e único" (Benjamin, 1987, p. 221
apud Salgado, 2008, p. 36), como o faiz Dina Salústio em cenas curtas, porém
contundentes. A escritora constrói suas histórias a partir das experiências
vividas no seu contexto, por veizes angustiantes, tristes, bem-humoradas, por
veizes cheias de sonhos e esperanças. A autora toma posições frente às
situações apresentadas na narrativa, coloca-se no lugar das companheiras de
luta e toma para si a responsabilidade de compreendê-las. Numa luta engajada
com a questão de gênero, revela a subjetividade feminina e as aprendiizagens
possíveis a partir de circunstâncias que envolvem as experiências das mulheres.
Ao ler os contos de Dina Salústio, o leitor é esclarecido sobre a situação das
mulheres em Cabo Verde, visto que eles expõem a subjetividade das mulheres,
sejam personagens ou narradoras, revelando, por suas próprias voizes e pelo
seu íntimo, o universo feminino. O conto "Foram as dores que o mataram",
acima apresentado, atesta a violência a que muitas mulheres são submetidas.
São mulheres sem voiz e sem rosto, são as anônimas, as passantes, traizidas ao
palco pela escrita de Dina Salústio que, ao promoverem uma releitura da
história literária e cultural de Cabo Verde, falam, escrevem e gritam.
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Geni Mendes de Brito
Tânia Maria de Araújo Lima
Recebido em 2 de março de 2017.
Atprovado em 17 de março de 2017.
Resumo/Abstract/Resumen
Dina Salústio e a violência de gênero na literatura cabo-verdiana
Geni Mendes de Brito
Tânia Maria de Araújo Lima
O conto "Foram as dores que o mataram", de Dina Salústio, escritora cabo verdiana, traiz à
lume uma discussão ímpar sobre a realidade de violência a que muitas mulheres estão
subjugadas em algumas ilhas de Cabo Verde, mas também em diferentes rincões do mundo.
À luiz dos estudos e do conceito da Literatura e da Antropologia sobre esta realidade
vivenciada por mulheres sofridas, silenciadas, decorrente do machismo e do patriarcado,
este ensaio apresenta uma análise sobre violência de gênero que, através da narrativa
contemporânea, anuncia um tipo de realidade que se abisma na lente de contato da
inscritura africana. Nessa travessia, a artimanha de contar história vem traduizida pelo
legado das culturas dos povos insulares.
Palavras-chave: Dina Salústio, literatura cabo verdiana, violência de gênero.
Dina Salústio and the gender violence in Cape Verdean literature
Geni Mendes de Brito
Tânia Maria de Araújo Lima
Te short story "Foram as dores que o mataram" ("It was the pain that killed him") by
Cape Verdean writer Dina Salústio sheds light on an unparalleled discussion about the
reality of violence to which many women are subjugated, on some islands of Cape Verde,
but also in diferent parts of the world. Tus, this essay presents an analysis of gender
violence, in light of the studies and the concepts in Literature and Anthropology, which
address this reality experienced by women who have sufered, and were silenced, and
mistreated, due to chauvinism and patriarchy. Trough the contemporary narrative,
which announces a form of reality that is puizizling in the contact lens of African
inscription. At these crossroads, the artifce of storytelling emerges, translated by the
legacy of the cultures of the island people.
Keywords: Dina Salústio, cape verdean literature, gender violence.
Dina Salústio y la violencia de género en la literatura caboverdiana
Geni Mendes de Brito
Tânia Maria de Araújo Lima
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Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 24, tp. 55–69 jul./dez. 2015
Dina Salústio e a violência de gênero
na literatUra cabo-verdiana
El cuento "Foram as dores que o mataram" ("Fueron los dolores los que lo mataron")
escrito por Dina Salústio, escritora caboverdiana, trae a la luiz una discusión impar
sobre la realidad de violencia de que muchas mujeres son víctimas en algunas islas de
Cabo Verde, como también en diferentes rincones del mundo. A la luiz de los
estudios, y del concepto de la Literatura y la Antropología sobre esta realidad
vivida por mujeres sufridas, silenciadas, resultado del machismo y del patriarcado, este
ensayo presenta un análisis sobre la violencia de género que, a través de la narrativa
contemporánea, anuncia una especie de realidad que se abisma en las lentes de contacto
de la escritura africana. En esta travesía, la artimaña de la narración viene traducida
por el legado de las culturas de los pueblos insulares.
Palabras clave: Dina Salústio, literatura caboverdiana, violencia de género.
Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 24, tp. 55–69, jul./dez. 2015
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