Entre o público e o privado

calçada, instalação de Rubens Mano nas Oficinas Culturais Oswald de Andrade, em 1999
calçada, instalação de Rubens Mano nas Oficinas Culturais Oswald de Andrade, em 1999

O grande edifício neoclássico da rua Três Rios, onde outrora funcionara a antiga Escola de Farmácia no bairro do Bom Retiro, foi tombado pelo Condephaat na década de 1980 e em 1986 recebeu sua nova vocação que perdura até hoje: abrigar as Oficinas Culturais Três Rios. Em 1990 o equipamento foi rebatizado como Oficina Cultural Oswald de Andrade, e passou a representar um dos pólos culturais mais importantes da região central da cidade de São Paulo.

O centro cultural oferece uma série de oficinas gratuitas nas áreas de música, artes visuais, dança e teatro, e como tal tem um público cativo, de feição especialmente jovem. Seu entorno é ocupado pela miscigenação típica do bairro do Bom Retiro, que, historicamente, recebeu ondas distintas de migração – desde os primeiros judeus e árabes protagonistas do comércio local, passando pela migração nordestina, até chegar nos coreanos e bolivianos, que configuram o mosaico social mais recente.

Apesar do intenso movimento local impulsionado pelo comércio diurno, o vai-e-vem das ruas no quadrilátero das Oficinas não se mostrou garantia para promover os usos do equipamento cultural no bairro. Quem passa diante da entrada principal do centro cultural não necessariamente o percebe como tal e nem dispõe-se a usá-lo. A pouca conexão entre o espaço aberto da rua e o espaço público do centro cultural foi a pedra de toque para a criação de calçada, instalação de Rubens Mano, realizada em 1999 nos espaços da Oficina Cultural Oswald de Andrade.

O convite para realizar uma obra no centro cultural resultou em cinco trabalhos sob o título geral de f:(lux)os; todos eles levaram o nome de seus sítios (calçada, porão, telhado, esgoto e parede), sendo calçada o principal, por meio do qual Mano forneceu eletricidade gratuita aos que por ali passavam durante seis semanas. Conta o artista que, ao perceber a ausência de transversalidade entre os espaços aberto (rua) e fechado (centro cultural), sua obra deveria criar uma conexão entre as duas instâncias, e, assim, intensificar as trocas socioculturais entre elas.

Por meio de conexões metálicas, Mano prolongou a rede elétrica do centro cultural até a calçada em frente ao edifício. Ao longo da extensão dos conduítes, o artista instalou pontos eletrificados que disponibilizaram energia aos usuários das oficinas e aos transeuntes do bairro.

A escolha dos pontos com tomadas foi definida pelo mapeamento realizado por Mano sobre aquele território, que buscou perceber os usos e vocações do lugar – incluindo seus usuários e sua sazonalidade – a exemplo dos estudantes de música que, nos intervalos de aula, tinham o hábito de se reunirem nas escadarias que dá acesso ao edifício para ensaios fortuitos.

A “escuta” do lugar é uma prática recorrente na obra do artista, por meio da qual busca compreender as características daquele contexto – físicas, culturais e sociais, e dali extrair sua potencialidade como trabalho de arte (disso podemos depreender que uma das possíveis razões dessa prática residiria na formação do artista como arquiteto, cuja atividade pressupõe um engajamento com o contexto, cada vez mais assentado numa dimensão antropológica).

No caso de calçada, norteado por essa falta de transversalidade entre as dimensões pública e privada, Rubens se deparou com a existência de um vendedor de vinis que ali se instalava diariamente para vender música.[1] Ao perceber sua condição desfavorável às vendas, o artista decide estender a eletricidade da instituição (pública) para a calçada, a fim de que o ambulante pudesse tocar seus discos; e, do mesmo modo, tantas outras atividades pudessem se beneficiar da iniciativa do artista.

Mais do que estender o alcance “público” das qualidades do centro cultural, e facilitar as vendas do ambulante, o ato do artista revela uma comunicação incipiente entre a instituição e seu entorno, entre seus praticantes e seus possíveis ouvintes. No rol institucional, ao invés de repudiar a apropriação das calçadas pelos ambulantes, convoca-os a participar ativamente trocando energia por musicalidade e facilitando as conexões entre público e privado. O que era público passa a ser privado (calçada) e o que era fechado (centro cultural) passa a ser franqueado ao público.

Essa alternância entre as duas dimensões remonta à dialética recorrente e perseguida na obra do artista, e implica uma interdependência entre elas – uma se alimenta da outra e se modifica, infinitamente. A dinâmica das trocas entre o dentro e o fora, entre o sistema da arte e seus públicos, de alguma forma personifica a dinâmica das trocas simbólicas na cidade. Nesse sentido, o artista não se contenta em criar uma obra para o recinto imaculado do edifício histórico, mas amplia sua atuação e reverbera o fazer artístico para além das fronteiras tradicionais da arte e das convenções normativas dos espaços expositivos, aproximando o espaço da arte e o espaço da alteridade, sob o olhar do transeunte.

Não só o papel institucional está em questão, mas também a efetividade das trocas entre as atividades artísticas e o espectador-participante (para usar o termo em voga nos anos 1990). A energia elétrica serve como pretexto para cativar os passantes do entorno e convoca-os a experimentar a instituição.

A dimensão do uso, e da transformação do uso, está no cerne do trabalho. Conta Rubens que, além do vendedor de vinis, um grupo de taxistas que ali fazia ponto também usufruiu da fonte de energia para ligar uma televisão. Durante a vigência da instalação, a energia era fornecida 24hs, o que possibilitou a extensão do horário de trabalho para alguns ambulantes do entorno, que passaram a trabalhar à noite. A cidade é, assim, praticada no instante em que seus protagonistas a transformam, alterando e ressignificando seus códigos de uso corrente; e dessa forma, se faz viva e dinâmica.

Além de calçada, o artista propôs outras quatro instalações, com a condição de que o primeiro trabalho fosse a conexão com a rua e que este permanecesse até que a última instalação se concretizasse. As instalações porão, telhado, esgoto e parede ocuparam os espaços do edifício de modo silenciado, por vezes de modo quase invisível, tal como a instalação luminosa no telhado do edifício, acessível apenas sob um ponto de vista pan-óptico.

Como em outras obras do mesmo período, a interferência de Mano é sutil, digo esteticamente sutil; mas, ao mesmo tempo, se mostra crítica e afirmativa. Em texto escrito pelo próprio Rubens, este cita Lucy Lippard para reafirmar a condição dos artistas interessados em atuar no contexto urbano como facilitadores, devendo “pôr em funcionamento os espaços sociais e políticos”, ou mesmo criar ações com a intenção de ativar “a consciência de um lugar marcando-o sutilmente, sem alterá-lo”.[2]

Rubens não depende de nenhum alarde para alimentar expectativas sobre suas intervenções no espaço aberto da cidade. Ao contrário, suas inserções são silenciosamente estranhas à paisagem; e, como pequenas alterações, aos poucos vão se revelando através de um processo de ressignificação dos espaços, de seus usos, fluxos e narrativas que constituem o palimpsesto urbano.

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[1] Palestra proferida por Rubens Mano na Escola da Cidade, São Paulo, em 2009. http://escoladacidade.org/bau/rubens-mano-o-espaco-enquanto-imagem-projetada/

[2] Mano, Rubens. Um lugar dentro do lugar. Revista Urbania 3. São Paulo, Editora Pressa, 2008. p. 101

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